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Os cinco escravos estavam enfileirados contra a parede do pequeno quarto vazio.
Não havia janelas no cubículo úmido e escuro, apenas a porta por onde entraram e outra idêntica do lado oposto. Ela foi aberta e uma exótica figura deteve-se ali; tirou o delicado véu que cobria sua cabeça e uma cascata de tranças negras emoldurou um rosto jovem de mulher. As vestes douradas contrastavam belamente com sua pele negra e a chama tênue da vela que segurava fazia seus olhos brilharem.
— Gaba — rosnou uma voz masculina. O feitor que os trouxera aguardava-a para negociar, meio escondido a um canto.
— Bastião. — A moça forçou um sorriso para o homem grisalho e esfarrapado.
Ela caminhou imponente por entre os escravos, avaliando. A maioria era bastante jovem, de modo que com alguns dias de boa alimentação e descanso talvez ficasse apta para o trabalho. Pareciam famintos e maltratados.
— Tens pegado pesado com estes aí — censurou-o. — Preciso deles com boa aparência.
Um dos rapazes, talvez o mais jovem de todos, disse algo numa voz estrangulada que ela não compreendeu.
Houve um estalo de chicote e um grito de dor.
— O que ele disse? — Gaba ergueu as sobrancelhas finas para o capataz. Não gostava daquela brutalidade.
— Quer saber quem tu és. — Bastião flexionou o braço com que segurava o chicote, olhando de cara amarrada para o garoto que se contorcia de dor no chão.
Ela deu uma risada retumbante.
— Eu sou a rainha, é claro! — Olhou para o velho, desconfiada. — Não esqueças de que preciso de homens saudáveis, de preferência que já tenham trabalhado num lugar como a minha casa.
— Nenhum antigo camarada de vossa mercê — escarneceu Bastião com uma reverência irônica. A mulher fingiu não perceber; sabia muito bem que ele não suportava ver uma ex-escrava coberta de tecidos caros numa posição de poder. Para ele, Gaba também devia estar ali acorrentada com os outros.
— E este aqui?
Aproximou-se do rapaz que levara a chicotada. Era alto, delgado e tinha a pele cor de café torrado. Os traços do seu rosto eram angulosos e atraentes, apesar do nariz quebrado. O jovem estava imundo, usando apenas calças em frangalhos. Seus olhos eram dois poços de infelicidade.
— Seu nome?
— Nuno — murmurou ele numa voz de túmulo.
— Tu preferes o chicote de Bastião ou trabalhar para mim dando prazer a algumas mulheres?
Ele não respondeu, apenas olhou para as correntes que o prendiam e meneou a cabeça, assentindo.
— Este serve — Gaba disse ao velho. — Leve os outros para fora daqui, e rápido.
Bastião e seus escravos, um por um, saíram do quarto fazendo as correntes tilintarem. Gaba observou-os e não conseguiu deixar de sentir uma grande piedade. Ela sabia muito bem, desde pequena, o que era ser tratada como um bicho enjaulado. Até que caiu nas graças dela, que estava tão necessitada por seus serviços. Aquela que chamavam Imperatriz do Brasil. Às vezes Rainha, outras vezes Princesa; na verdade o título pouco importava para o povo (tentar garantir o pão duro e o leite estragado de cada dia era mais importante do que as excentricidades da Família Real portuguesa), que nas ruas do Rio de Janeiro referia-se a ela como esposa de Dom João ou Rainha de Bigode.
Nuno pousou seus olhos escuros na mulher que o observava.
— A sinhá não tem medo de mim?
— Nem um pouco. Por que me chamas de sinhá? Não vês que temos a mesma cor de pele? Talvez meu modo de falar e minhas roupas dêem-te a ilusão de que tenho a melhor vida do mundo para alguém de nossa cor e nossa sina. Se eu pudesse, tiraria os ferros de todos nossos irmãos para tornar reais nossos sonhos de liberdade, mas por enquanto não me é possível. Sou tão escrava quanto tu és, apesar de não trazer correntes em meus pulsos.
— O que vai acontecer comigo?
— Aguarde aqui, logo mandarei minhas ajudantes trazerem comida. — Não gostava de usar a palavra “mucama” para suas irmãs ainda escravizadas. — Tu estás reservado para alguém muito importante.
— Quem?
— A rainha.
Ela lhe virou as costas e começou a sair do quarto. Nuno pareceu confuso.
— Mas vosmecê disse que era a rainha!
Gaba lhe lançou um olhar de desdém por cima do ombro e fechou a porta, deixando-o na penumbra.
         ***
A casa de prazeres que pertencia a Gaba ficava no coração do bairro Santo Cristo, numa rua composta de sobrados pintados das mais diversas cores. Os píeres e ancoradouros não ficavam longe e era possível sentir o cheiro da maresia. Ali surgia todo tipo de clientela ávida por breves momentos com alguma escrava bonita, de lábios carnudos, quadris largos e conhecedora de todos os truques para satisfazer um homem, ou com mulheres livres que tinham o prazer como modo de vida. Bancários, pescadores, advogados, açougueiros: naquele lugar as distinções sociais eram deixadas de lado para que todos, cavalheiros e gente do povo, pudessem saciar seus instintos desesperados.
Um belo rapaz estava parado na sala de recepção abafada, onde as prostitutas exibiam-se para os poucos frequentadores daquela noite. Era um aposento amplo com piso e paredes de madeira velha. Havia cadeiras e sofás puídos (cada qual com um cliente e uma moça em seu enlaço) dispostos em círculo, e, no centro, uma mesa com frutas, vinho barato e cinzeiros. As janelas e portas estavam abertas, deixando a brisa fétida da cidade entrar em ondas de calor.
— Nuno — chamou Rosa, a jovem que estava sentada no colo de um homem tão velho que parecia prestes a desmontar sob o peso daquela negra curvilínea. As mulheres que ali trabalhavam se apegaram muito a ele, mesmo que tivesse chegado há pouco tempo.— Cuidado com a rainha!
— Ah, não — ele suspirou. Rosa com certeza iria soltar a voz numa canção de taverna que cantava toda vez que o via:
Tem mais bigode que o rei,
Imperatriz do pecado!
Se cuida que ela te morde;
Carlota está vindo, cuidado!

Clientes e profissionais aplaudiram a moça, que sorriu e fez uma reverência erguendo as saias como se fosse uma dama.
— Me leva no lugar onde cantam essa música, Rosa — sugeriu Nuno.
— Vou juntar um dinheirinho e vamos embora daqui, o que acha?
Ele deu uma risada prazerosa, mas logo o sorriso sumiu de seu rosto.
— Como? A sinhá Gaba nunca me deixa sair daqui.
Rosa ficou anormalmente séria e apontou para o corredor.
— Tem gente chamando, vá lá.
Agora que o momento havia chegado, Nuno sentiu-se apreensivo. Não queria deixar Rosa no colo do velho hediondo; queria pegá-la pela mão e fugir dali. Ele caminhou lentamente até a porta entreaberta, nervoso. Ao se aproximar do quarto, percebeu que lá dentro alguém dizia:
— Tu precisas limpar melhor este chão. Estás aqui para trabalhar, não para fazer esta cara de sofredora.
Sentiu um frio na barriga pensando que tal reprimenda se dirigia a ele, mas a dona daquela voz olhava com desagrado para uma mucama que estava presente. E que mulher estapafúrdia era aquela dama aos olhos de Nuno! Quase anã, apesar dos sapatos altos de camurça vermelha em seus pés, pele macilenta, cabelos negros e espessos, presos a muito custo no topo da cabeça, e um rosto com traços fracos e pouco agradáveis. Muitas prostitutas da casa eram mais belas que aquela mulher, embora não estivessem enfeitadas com todas aquelas joias e rendas.
A escrava se atirou aos pés de Carlota Joaquina de Bourbon e, espavorida, desamarrou um pano da cintura para lustrar o chão de joelhos. O olhar da rainha se fixou no rapaz e sua expressão desanuviou. Sorriu para ele, embora isso não a deixasse menos feia.
— Entre. E feche a porta.
Um guarda muito parecido com Bastião, porém mais jovem, estava prostrado ao lado da janela por onde entrava uma fraca luz de luar que fazia brilhar a lâmina do machado aos seus pés; Gaba lhe prevenira que ele estaria presente para garantir a segurança da rainha. Uma velha costureira ajustava o vestido de Carlota com alfinetes enquanto ela tentava não se mexer, os braços abertos graciosamente. As chamas nos castiçais faziam a pele sem vida da mulher refulgir.
— Agrada-te meu vestido novo, Nuno? Tu és a primeira pessoa a vê-lo — disse a espanhola, alisando as saias de seda brilhante. — Consegues me entender? Meu Português não é muito bom. Deves pensar que sou louca por estar tão à vontade num lugar como este, mas todos aqui ou tiveram as línguas arrancadas, ou são dignos de confiança. O que posso dizer é que sei cativar a lealdade dos meus criados, não é mesmo, Benta?
A moça que estava tentando limpar o piso de madeira (talvez uma mancha de vinho, imaginou Nuno) ergueu os olhos e acenou com a cabeça, nervosa.
— Benta é um pouco rebelde — confidenciou Carlota com carinho. — Todas as mucamas têm essa peculiaridade de caráter, mas ela está melhorando. Quando eu e Nuno terminarmos, tu voltarás aqui e deixarás tudo limpinho, está bem? Não é um trabalho tão horrível assim, é? — Benta estremeceu e voltou a limpar as manchas do chão.— Alabado sea Dios! — riu-se a rainha ao observar a aflição da garota. — Agora deixem-nos.
A pequena e enrugada costureira ajudou Carlota a tirar o vestido e levou-o consigo para fazer os últimos ajustes, enquanto a escrava saía de cabeça baixa em silêncio. O homem parecido com Bastião, porém, permaneceu em seu posto, rígido e inexpressivo.
Carlota avaliou o rapaz. Gaba conoce mi gusto, refletiu. Pegou-o pela mão e ambos sentaram-se na cama coberta por lençóis limpos.
— Vosmecê não ama o rei? — A pergunta escapou dos lábios de Nuno. — Vossa majestade — corrigiu-se depressa usando o tratamento adequado.
A rainha olhou-o por um momento e ele sentiu medo.
— Há certas coisas que ele não pode me dar — respondeu com malícia. — O que acontecerá aqui não significa nada.
— As mulheres não pensam assim — murmurou o escravo.
— Não sou uma mulher qualquer, sou uma rainha. — Carlota sorriu e Nuno notou o buço escuro acima dos seus lábios flácidos. — Mas entendo seu pensamento, uma vez que é mais comum que os homens sejam infiéis. Esta virtude incorruptível é dispensada às mulheres, ai de nós! O nosso amor, dizem, é fiel como um cãozinho manso, e enquanto isso os maridos se deitam com qualquer prostituta. Ou prostituto. — Deu uma risada. — Mas o que tu entendes de mulheres ou da vida? No eres más que un niño.
Carlota soltou um pesado suspiro e fitou o teto, perdida em pensamentos. Não, não amava o rei. Sequer viviam juntos. Há anos moravam em casas separadas e encontravam-se, muito a contragosto, apenas em ocasiões formais.
— O rei! — ironizou em voz alta. — O tolo, eis a verdade! — El estorbo de mi gloria!, gritou com ferocidade uma voz em sua cabeça. Ainda não conseguira tirá-lo do poder, mas havia tempo. Para ela, a rainha, tudo era possível.
Nuno não estava gostando do tom daquela conversa; certamente ela não costumava compartilhar seus sentimentos com escravos de cama. Pelo menos não com os que ainda têm língua na boca, pensou com um calafrio, mas a visão de Carlota despindo-se apagou qualquer divagação em sua mente. Teve de pensar em Rosa para conseguir ficar apto, mas cumpriu seu encargo. O guarda continuava ali, parado e fingindo que não estava presente. Nuno fez o melhor que pôde para ignorá-lo.
Enquanto estava nos braços do rapaz, Carlota não pensava em Nuno, nem em seu marido... Muito menos no fato de que o escravo não poderia sair vivo daquele quarto. Gaba lhe pedira que o poupasse, mas o risco de uma denúncia não valia a pena. Nuno não era o primeiro e não seria o último. A rainha só conseguia pensar na satisfação por estar quebrando todas as convenções, sua vingança particular contra um mundo que era retrógrado demais, moralista demais.  A beleza ela jamais possuíra e o tempo já lhe cobrava o preço por seus desejos que não conheceram a realidade. Isto a matava por dentro. O prazer era seu subterfúgio, seu último recurso para convencê-la de que Deus não estava morto e que sua vida, quiçá, fazia algum sentido.
Nuno adormeceu entre os seios quentes da rainha e nem percebeu quando ela se desvencilhou. Carlota observou-o dormindo. E por que haveria de sentir culpa? Que vida miserável aguardava esta pobre alma! Sentia que estava lhe dando um presente, uma bênção entregue por um anjo com asas de luz. Sair desta existência na flor da idade sem maiores máculas do que sonhos juvenis jamais realizados e um pouco de sangue derramado? Isto lhe parecia mais doce do que a vida que a aguardava lá fora. Vestiu suas roupas silenciosamente e retirou-se sem hesitar.
As velas dos castiçais já haviam se extinguido e o amanhecer despontava lentamente. Quando abriu os olhos, Nuno percebeu que uma sombra vigilante o observava.
O guarda aproximou-se da cama e o arrastou pelos cabelos até o centro do quarto, jogou-o no chão e imobilizou seus braços por trás. Seu rosto ficou bem em cima de uma das manchas que a mucama tentara limpar mais cedo.
Tinha cheiro de sangue.

O sorriso de Rosa foi sua última lembrança e a lâmina do machado desceu com precisão — apenas um golpe e estava feito.



Você encontra a pessoa mais linda que já viu. Descreva-a e como você se sente ao vê-la.

O Führer está morto! O Führer foi assassinado! Deu fim à própria vida! Fugiu do país!, eram os comentários controversos pelas ruas de Berlim.

             A mão de Heinrich sangrava profusamente — um fluxo demasiado intenso para um corte tão pequeno.

            Ao sair da escola, viu um grupo de homens (imprudentes ou corajosos, não sabia defini-los bem) causando alvoroço numa praça do centro. Alguns cidadãos estavam em júbilo com a suposta notícia, outros temerosos. Os soldados do Partido Nazista tentavam contê-los e, buscando fugir da confusão, Heinrich caíra no chão e se cortara. Aquilo não seria nada para qualquer outro jovem de sua idade; a cicatriz até seria motivo de orgulho. Para um hemofílico, porém, era preocupante. Ele tentava ao máximo esconder sua condição e este foi seu primeiro acidente em muito tempo.

            Correu pelas ruas apinhadas de soldados que se esforçavam para controlar o motim; quanto mais se distanciava, mais abafados os sons se tornavam. Ao longe, pensou ter ouvido um tiro. Sabia que não devia correr, já que em sua condição qualquer pequeno ferimento podia ser grave; mas o medo, este sentimento cuja ausência ele parecia desconhecer, o incentivava a correr até as pernas doerem. De repente viu-se numa ruazinha estreita com casebres e cortiços muito antigos. Apesar da desolação, os moradores pareciam se esforçar para manter o lugar atraente, seja com uma pintura alegre nas portas de madeira ou com vasos de flores nas janelas quebradas. Por mais inútil que parecesse, qualquer tentativa de estimular beleza e esperança era válida naqueles dias. Heinrich entrou na última casa da rua, ofegando.

            Era um cômodo pequeno com piso e teto de madeira. Nas paredes brancas de cal pendiam quadros toscamente pintados, mas agradáveis pelas cores suaves. Pequenas esculturas de argila se amontoavam num canto, e em outro se destacava uma estante com diversos livros surrados. Duas camas simples ficavam próximas à grande janela com cortinas rendadas. Heinrich dobrou o corpo com as mãos nos joelhos para retomar o fôlego. Sua casa, com todas as bugigangas e excentricidades de sua mãe, sempre o fazia se sentir protegido.

            A mulher entrou pelos fundos e ficou atônita ao ver o uniforme da Juventude Hitlerista coberto de sangue.

            — Mein Gott!

            — Não é nada, mutti. Já está estancando.

            — Se ao menos Rasputin estivesse aqui para salvá-lo, para curá-lo como fez tantas vezes com meu irmãozinho Alexei! É minha culpa que você tenha herdado essa doença. Venha, Gregório Rasputin, e salve o filho de sua amiga Anastácia, o neto do último czar da Rússia!

            — Você não é Anastácia Romanov!

           — Claro que sou. Sou a única sobrevivente do massacre que dizimou a Família Imperial e me refugiei aqui. Meus pais eram Nicolau e Alexandra. Você tem a mesma doença no sangue que meu irmão mais novo teve. Falo russo!

            — Ter a mesma doença do czaréviche é só coincidência, e aquilo que você fala é uma língua inventada.

           — Sabe qual é a maior prova de que falo a verdade, filho? Não busco publicidade como as impostoras que dizem ser eu. Estou aqui apenas vivendo e tentando esquecer o que fizeram à minha família.

              — Seu nome é Heidi, não Anastácia — insistiu ele, aborrecido.

            “Seu sofrimento foi tão grande que a enlouqueceu, mutti. Mas eu te amo e irei cuidar de você”, pensou Heinrich com um suspiro de cansaço, desenrolando sua mão da camisa manchada de vermelho. Há dois anos o pai do garoto falecera devido a uma bomba que devastou uma cidade próxima, e desde então sua mãe tornara-se Anastácia à espera do monge louco.

            Heidi dava aulas de Arte e História para as crianças da vila até que o regime atual proibira qualquer educação informal, obrigando seus alunos a freqüentarem escolas apropriadas. A imaginação daquela professora gentil era poderosa, e a História da Rússia — em especial a história de certa família imperial que fora massacrada por soldados bolcheviques — sempre lhe fascinara. Autoridades ficaram sabendo dos temas peculiares que Heidi lecionava e, numa noite gélida quando Heinrich tinha seis anos, dois soldados apareceram à porta para um educado conselho: nada de macular as mentes das crianças alemãs com História Russa. Na ocasião, Heinrich apontara para o capacete de um dos soldados e perguntara se era um penico sujo. O homem lhe dera um chute em uma das pernas que o fez cair e cortar o braço. Sua mãe saíra desesperada à procura do médico enquanto os soldados iam embora. Foi uma de suas piores hemorragias, mas conseguiu se recuperar.

        — Rasputin! Tentaram se livrar dele porque era poderoso e santo! — exclamou Heidi (ou Anastácia) animada, como se estivesse diante de alunos ávidos para ouvirem o que tinha a dizer sobre Rasputin e seus estranhos poderes místicos. — Curava qualquer doença, dava conselhos para meus pais. Tenho certeza de que ele também não morreu e está à minha procura. Ele irá nos achar e poderá curá-lo, filho; talvez até consiga trazer seu pai de volta à vida. Você conhecerá o poder que emana daqueles olhos: parecem saber exatamente quando e como coisas terríveis irão acontecer.

           Subitamente, enquanto sua mãe continuava naquela profusão de palavras sem sentido, Heinrich teve uma estranha sensação. Era como se sua vulnerabilidade e loucura tivessem erguido o véu do tempo e o filho a visse pela primeira vez. Naquela perspectiva, ela voltara a ser a mulher bonita que era antes de seu pai morrer: os cabelos louros eram espessos e longos, não ralos e descuidados; a pele do rosto era lisa e firme, os olhos azuis eram vivos e atentos, não dois poços escuros circundados por olheiras e pés-de-galinha. O sorriso voltara a ser o que devia ser: branco e iluminado como manhã de primavera. Agora, os lábios dela só emitiam insanidades de uma vida que não viveu para disfarçar a tragédia do presente. Mas, ainda assim, amou-a profundamente naquele momento, porque teve certeza que ela era a pessoa mais linda que já vira e que haveria de ver por toda sua vida... Caso tivesse a sorte (ou azar?) de viver por mais algum tempo.

— O próprio Hitler empalideceria diante de Rasputin — sussurrou Heidi em tom de assombro.

            — O Führer morreu, é o que estão dizendo — disse o menino, e os olhos daquela que pensava ser a Grã-Duquesa perdida se arregalaram; não de tristeza nem de alegria, mas de medo. Era o fim da guerra ou o início de outra ainda pior?

         — Rasputin irá nos achar — ela garantiu, aproximando-se da janela. E ali ficou por muito tempo para aguardar, sabia Heinrich, pelo seu fantasma salvador que não existia.
Você encontra a pessoa mais linda que já viu. Descreva-a e como você se sente ao vê-la.


        A PROBABILIDADE de eu estar na varanda numa tarde livre, deitada no piso gelado com um cobertor sobre as pernas e, se disposta a me levantar para fazer, uma xícara de café preto — gosto de imaginar que sempre estará frio, embora viver num país tropical não me dê muitas oportunidades e sempre acabe úmida, seminua e extremamente irritada —, é bastante próxima de cem. Também queria dizer que meu passatempo é ler uma enorme quantidade de livros, destes que sempre me aguardam em algum canto e cujas simples aparições me deixam culpada; mas na maioria das vezes apenas fecho os olhos e imagino coisas ou, como agora, tento vislumbrar um pedaço do mundo através das grades espaçadas de metal.
        Há uma singela diferença entre imaginar e espiar. É divertido inventar, ponderar e refletir sobre as mais diversas situações, aquelas que se misturam com a música e te levam para lugares encantadores. Ponto para a imaginação. Mas falta uma coisa que faz toda a diferença: o elemento surpresa. A realidade, por mais entediante que seja, ainda consegue nos pescar através das pequenas coincidências.
        E naquela varanda, num daqueles dias em que a auto-piedade invade seu organismo como um parasita e você já está de saco cheio de si mesma, lutando contra a vontade de se socar... ali foi onde a vi pela primeira e última vez.
        Meu primeiro impulso foi de saltar aquele andar inteiro, desfazer a distância entre nós e mergulhar o nariz na curva do seu pescoço. Eu não sabia se a vontade maior era de tocá-la ou ficar imóvel e prender a respiração com medo de assustar, como a um passarinho. Por um momento eu só fiquei lá, atônita — aquela moça, uma moça qualquer, passando naquela rua como um carro alegórico, e outra qualquer observando cada movimento seu atentamente.
        Levantei e me apoiei com os cotovelos na mureta da varanda. Ela levantou a cabeça, seus olhos escuros fechando-se levemente à pungente luz do sol, a flor amarela em seu cabelo brilhando. E então sorriu: um sorriso que pra mim era tão cheio de significados quanto a Caixa de Pandora e pra ela era possivelmente apenas um exercício aleatório de simpatia. Talvez ela estivesse mesmo de saco cheio, voltando de uma ida à lotérica para pagar contas. Talvez ela só quisesse chegar em casa (será que morava perto?), tomar um banho gelado e bater um pratão de comida.
        Eu não sei. Mas ela estava me vendo e eu fiquei extasiada. Aquilo era ridículo.
        Só me restou observá-la enquanto se afastava. O vestido florido meneando ao simples toque da brisa, a pele cor de chocolate, o fulgurar das argolas de metal em sua orelha, um vislumbre do chinelinho de dedo e ela tinha virado a esquina. Não sei dizer o que estava esperando, mas o momento acabou. Sem eu dar oi e chamá-la para entrar, o que seria estranho, ok, mas que diabos eu poderia fazer? Eu nem sabia o que eu queria.
        Suspirei e pensei, enquanto me apoiava na porta da geladeira aberta e considerava o lanche da vez, que não tinha sequer um nome para associar à memória.




Desafio Para Um: Use uma foto (tirada por você) como inspiração para escrever. Mínimo de 500 palavras. Sem máximo.


"Mariana corria de um lado para o outro da calçada, suas sapatilhas cor de rosa quase escapando de seus pequenos pés. Sua avó a observava com um misto de carinho e preocupação no olhar, rezando para que essa empolgação não durasse a noite toda.

Aquele dia definitivamente tinha sido feito só para Mariana. O céu estava azul e sem nuvens, do exato jeito que a garota mais gostava. Passara o dia andando na rua sem olhar para frente, seus olhos e dedos sempre voltados para o céu, prontos para seguir o trajeto de um avião ou o voo de um pássaro. A garotinha mal olhava para frente, e coube a sua avó guia-la por entre as árvores do parque, e evitar que trombasse com todos os visitantes. Para melhorar seu dia perfeito, tinha sarado do seu resfriado há duas semanas e pôde tomar não um, mas dois sorvetes!

Porém, o sol insistiu em se por, o parque em fechar, e sua avó em voltar para casa. Mariana encarou o céu azul escuro e fez uma careta, cansada daquela imensidão sem brilho.

“Vó.” Chamou, puxando a barra da saia da sua segunda pessoa favorita no mundo.

“Já estamos chegando, Mari.”

“Não! Não é isso.” Responde e parou de caminhar. Ouviu o suspiro cansado de sua avó, e esperou pacientemente enquanto ela se agachava para conversar. Mariana não entendia porque os adultos sempre faziam isso, mas achava melhor não questionar.

“Qual o problema, Mari?”

“Por que não tem estrelas aqui?”

Ouviu um segundo suspiro e esperou — não tão pacientemente — pela resposta, balançando seus braços de um lado para o outro e observando o céu acima, tentando contar as poucas estrelas que via aqui e ali.

“Temos estrelas aqui sim, só não podemos vê-las, querida.”

“E por que não?”

“Porque temos muitas luzes aqui embaixo, e elas acabam brilhando mais do que as estrelas lá em cima.”

Franziu o cenho, olhando para os prédios, pessoas, carros e objetos variados ao seu redor. A explicação de sua avó não fazia muito sentido na sua cabeça. Os prédios estavam iluminados, é verdade, assim como os carros e seus faróis, mas tudo tinha um distinto tom de cinza, tudo chato e triste. Não conseguia compreender como que a luz cinza podia ser mais intensa que o branco das estrelas brilhando no céu azul.

“Vó.” Chamou de novo, contendo o riso ao ouvir o terceiro suspiro da noite. Talvez teria sido melhor chamar sua avó antes de ela levantar do chão.

“Sim, Mari.”

“Ainda tem giz pra desenhar?”

“Tem, mas nós já brincamos de aulinha hoje, lembra? Sua mãe não vai gostar de ver você levar os brinquedos sujos para casa.”

“Não é para isso!” Balançou a cabeça com força, seus cachos castanhos ficando ainda mais revoltos. “Vou fazer estrelas.”

“No céu?” Ela perguntou e riu. Mariana não entendeu o motivo da graça, era óbvio que não tinha como desenhar lá no alto, mas era melhor ver sua avó rindo do que suspirando, então não comentou nada de novo.

“Não. Posso só pegar o giz, por favor?” Por favor sempre funcionava.

Pegou suas cores favoritas: verde das árvores, rosa das nuvens no pôr do sol, e azul do céu num dia quente de verão. Escolheu o quadrado maior e mais cinza que encontrou por perto e correu até ele, os três gizes na mão.

“Mariana! Mariana, não desenhe na rua! Mariana! Olhe seu vestido, já está todo sujo!”

Ignorou sua avó. Será que ela não sabia que o vestido ficaria limpo de novo depois de lavar? Tudo bem, isso não importava. O que importava é que Mariana queria ver estrelas no céu escuro da cidade, mas não podia. Importava que as luzes dos prédios e carros não a alegravam como a luz do sol no céu azul. Importava que tudo estava muito cinza, e Mariana não gostava de cinza.

Gostava de azul, verde e rosa. Gostava do brilho do sol e das estrelas. Mas percebeu, naquela noite, que gostava mais ainda de poder criar seu próprio céu, e desenhá-lo aonde quisesse. E descobriu, assim, que não precisava sentir falta das estrelas a noite. Quando tudo estivesse cinza e sem graça, faria seu próprio céu, com as estrelas mais brilhantes do mundo, e de todas as cores que quisesse."






Desafio Dos Três:
Você encontra a pessoa mais linda que já viu. Descreva-a e como você se sente ao vê-la.


"Andando pelas ruas de São Paulo é fácil encontrar pessoas esteticamente belas. Simétricas, proporcionais, altas, magras, elas se encaixam nos padrões de todas as formas possíveis. Com seus cabelos esvoaçantes e saltos que fazem clac-clac no sujo concreto, elas se destacam por entre as multidões de cidadãos, e são, para muitos, como gotas de cor nessa cidade tão cinza.

São, para mim, apenas outro tom desse matiz acromática.

Talvez eu não saiba julgar o que é belo ou não. Talvez o que tenho para lhe contar seja inútil e patético, apenas a memória de uma velha tola. Entretanto, para mim, a verdadeira beleza é rara nesse mundo, e quando vista, deve ser compartilhada.

Pela primeira vez eu andava de metrô e ela estava sentada no banco do trem, na minha frente. Não havia nada de especial naquela garota — uma jovem como outra qualquer, com seus fones brancos escondidos pelos longos cabelos e uma touca de lã que era, na minha opinião, a touca mais feia que já vira na vida. Porém, de alguma forma, o jeito como ela mexia nos cabelos meio embaraçados, aquele gorro velho completamente torto na sua cabeça...naquele momento ela era adorável.

Lembro de suas roupas escuras, meio gastas e desbotadas, o tênis sujo, e as unhas pintadas de azul com o esmalte lascado. Por muito tempo a observei, e só conseguia pensar no quão diferente ela era para mim, tão oposta às pessoas que eu conhecia. Minha mãe me segurava com força no colo, suas mãos finas e brancas apertando minha barriga, e as compridas unhas vermelhas me machucavam cada vez que ela se mexia com os movimentos bruscos do trem. Seu perfume forte me enjoava e, em um momento, fiz uma careta ao sentir o cheiro.

Foi então que ela olhou para mim. Verdadeiramente olhou para mim, como nenhum adulto jamais havia olhado.

Jamais me esquecerei daquele sorriso-quase-risada. Seus olhos castanhos eram tristes, e no canto brilhavam gotas de lágrimas que eu não vi cair. Rapidamente ela as enxugou com os dedos finos e tortos, e voltou a atenção para mim. O nariz enrugava quando sorria, os lábios sem cor esticavam e empurravam as grandes bochechas para cima, criando montanhas cor de rosa em seu rosto.

Eu poderia falar das linhas que começavam a aparecer no canto dos olhos semicerrados, ou da pinta-bolota no canto do seu queixo, e até mesmo de uma pequena manchinha vermelha no meio da testa. Eu poderia falar dos cabelos escuros e bagunçados, do anel barato que manchava seu dedo e até mesmo da tatuagem torta de estrela que ela tinha no punho direito. Nada disso importa.

Em seu olhar eu vi amor. Pela primeira vez na minha curta vida alguém havia me olhado e realmente me visto!

Aquela completa estranha estava fazendo caretas para mim, me imitando! Ri, e escondi a risada com as minhas pequenas mãos gordinhas. Senti os braços de minha mãe apertar ao redor da minha barriga e a encarei com raiva. Ouvi a garota rir do meu gesto, um som melodioso, como uma canção, e voltei minha atenção para ela.

Ela pendeu a cabeça para o lado, mostrou a língua para minha mãe que, distraída com o jornal, não viu, e então piscou para mim. Ri alto, e ela sorriu de novo. Sorri também, um tanto tímida, corando de vergonha.

Na parada seguinte, ela se levantou. Estiquei uma mão para tocá-la, queria ter certeza de que aquele ser humano que havia me notado era real. Uma mão quente se fechou ao redor da minha, e ela sussurrou “tchau”. Antes de sair, se virou para trás e pude ver seu sorriso uma última vez, seu olhar carinhoso sem um traço de tristeza.

Até aquele dia, eu não conhecia carinho ou amor. Não posso reclamar, minha infância foi boa, e foram poucas as vezes que entrei em um metrô novamente. Porém, se eu pudesse escolher, teria trocado todas as minhas bonecas e casinhas, meus jogos de tabuleiro e fitas de desenho por mais sorrisos como aquele, por mais pessoas belas como aquela garota.

Nunca mais a vi. Ainda hoje me pergunto o que aconteceu com ela, porque ela estava chorando, se deu tudo certo no final. Creio que jamais saberei a resposta. Seja como for, queria apenas poder dizer que serei eternamente grata por ela ter me ensinado — com um sorriso e um olhar — o verdadeiro significado de beleza. Esteja onde estiver, para mim, ela sempre será a mais bela de todas."