Os cinco escravos estavam enfileirados contra a parede do pequeno quarto vazio.
Não havia janelas no cubículo úmido e escuro, apenas a porta por onde entraram e outra idêntica do lado oposto. Ela foi aberta e uma exótica figura deteve-se ali; tirou o delicado véu que cobria sua cabeça e uma cascata de tranças negras emoldurou um rosto jovem de mulher. As vestes douradas contrastavam belamente com sua pele negra e a chama tênue da vela que segurava fazia seus olhos brilharem.
— Gaba — rosnou uma voz masculina. O feitor que os trouxera aguardava-a para negociar, meio escondido a um canto.
— Bastião. — A moça forçou um sorriso para o homem grisalho e esfarrapado.
Ela caminhou imponente por entre os escravos, avaliando. A maioria era bastante jovem, de modo que com alguns dias de boa alimentação e descanso talvez ficasse apta para o trabalho. Pareciam famintos e maltratados.
— Tens pegado pesado com estes aí — censurou-o. — Preciso deles com boa aparência.
Um dos rapazes, talvez o mais jovem de todos, disse algo numa voz estrangulada que ela não compreendeu.
Houve um estalo de chicote e um grito de dor.
— O que ele disse? — Gaba ergueu as sobrancelhas finas para o capataz. Não gostava daquela brutalidade.
— Quer saber quem tu és. — Bastião flexionou o braço com que segurava o chicote, olhando de cara amarrada para o garoto que se contorcia de dor no chão.
Ela deu uma risada retumbante.
— Eu sou a rainha, é claro! — Olhou para o velho, desconfiada. — Não esqueças de que preciso de homens saudáveis, de preferência que já tenham trabalhado num lugar como a minha casa.
— Nenhum antigo camarada de vossa mercê — escarneceu Bastião com uma reverência irônica. A mulher fingiu não perceber; sabia muito bem que ele não suportava ver uma ex-escrava coberta de tecidos caros numa posição de poder. Para ele, Gaba também devia estar ali acorrentada com os outros.
— E este aqui?
Aproximou-se do rapaz que levara a chicotada. Era alto, delgado e tinha a pele cor de café torrado. Os traços do seu rosto eram angulosos e atraentes, apesar do nariz quebrado. O jovem estava imundo, usando apenas calças em frangalhos. Seus olhos eram dois poços de infelicidade.
— Seu nome?
— Nuno — murmurou ele numa voz de túmulo.
— Tu preferes o chicote de Bastião ou trabalhar para mim dando prazer a algumas mulheres?
Ele não respondeu, apenas olhou para as correntes que o prendiam e meneou a cabeça, assentindo.
— Este serve — Gaba disse ao velho. — Leve os outros para fora daqui, e rápido.
Bastião e seus escravos, um por um, saíram do quarto fazendo as correntes tilintarem. Gaba observou-os e não conseguiu deixar de sentir uma grande piedade. Ela sabia muito bem, desde pequena, o que era ser tratada como um bicho enjaulado. Até que caiu nas graças dela, que estava tão necessitada por seus serviços. Aquela que chamavam Imperatriz do Brasil. Às vezes Rainha, outras vezes Princesa; na verdade o título pouco importava para o povo (tentar garantir o pão duro e o leite estragado de cada dia era mais importante do que as excentricidades da Família Real portuguesa), que nas ruas do Rio de Janeiro referia-se a ela como esposa de Dom João ou Rainha de Bigode.
Nuno pousou seus olhos escuros na mulher que o observava.
— A sinhá não tem medo de mim?
— Nem um pouco. Por que me chamas de sinhá? Não vês que temos a mesma cor de pele? Talvez meu modo de falar e minhas roupas dêem-te a ilusão de que tenho a melhor vida do mundo para alguém de nossa cor e nossa sina. Se eu pudesse, tiraria os ferros de todos nossos irmãos para tornar reais nossos sonhos de liberdade, mas por enquanto não me é possível. Sou tão escrava quanto tu és, apesar de não trazer correntes em meus pulsos.
— O que vai acontecer comigo?
— Aguarde aqui, logo mandarei minhas ajudantes trazerem comida. — Não gostava de usar a palavra “mucama” para suas irmãs ainda escravizadas. — Tu estás reservado para alguém muito importante.
— Quem?
— A rainha.
Ela lhe virou as costas e começou a sair do quarto. Nuno pareceu confuso.
— Mas vosmecê disse que era a rainha!
Gaba lhe lançou um olhar de desdém por cima do ombro e fechou a porta, deixando-o na penumbra.
***
A casa de prazeres que pertencia a Gaba ficava no coração do bairro Santo Cristo, numa rua composta de sobrados pintados das mais diversas cores. Os píeres e ancoradouros não ficavam longe e era possível sentir o cheiro da maresia. Ali surgia todo tipo de clientela ávida por breves momentos com alguma escrava bonita, de lábios carnudos, quadris largos e conhecedora de todos os truques para satisfazer um homem, ou com mulheres livres que tinham o prazer como modo de vida. Bancários, pescadores, advogados, açougueiros: naquele lugar as distinções sociais eram deixadas de lado para que todos, cavalheiros e gente do povo, pudessem saciar seus instintos desesperados.
Um belo rapaz estava parado na sala de recepção abafada, onde as prostitutas exibiam-se para os poucos frequentadores daquela noite. Era um aposento amplo com piso e paredes de madeira velha. Havia cadeiras e sofás puídos (cada qual com um cliente e uma moça em seu enlaço) dispostos em círculo, e, no centro, uma mesa com frutas, vinho barato e cinzeiros. As janelas e portas estavam abertas, deixando a brisa fétida da cidade entrar em ondas de calor.
— Nuno — chamou Rosa, a jovem que estava sentada no colo de um homem tão velho que parecia prestes a desmontar sob o peso daquela negra curvilínea. As mulheres que ali trabalhavam se apegaram muito a ele, mesmo que tivesse chegado há pouco tempo.— Cuidado com a rainha!
— Ah, não — ele suspirou. Rosa com certeza iria soltar a voz numa canção de taverna que cantava toda vez que o via:
Tem mais bigode que o rei,
Imperatriz do pecado!
Se cuida que ela te morde;
Carlota está vindo, cuidado!
Clientes e profissionais aplaudiram a moça, que sorriu e fez uma reverência erguendo as saias como se fosse uma dama.
— Me leva no lugar onde cantam essa música, Rosa — sugeriu Nuno.
— Vou juntar um dinheirinho e vamos embora daqui, o que acha?
Ele deu uma risada prazerosa, mas logo o sorriso sumiu de seu rosto.
— Como? A sinhá Gaba nunca me deixa sair daqui.
Rosa ficou anormalmente séria e apontou para o corredor.
— Tem gente chamando, vá lá.
Agora que o momento havia chegado, Nuno sentiu-se apreensivo. Não queria deixar Rosa no colo do velho hediondo; queria pegá-la pela mão e fugir dali. Ele caminhou lentamente até a porta entreaberta, nervoso. Ao se aproximar do quarto, percebeu que lá dentro alguém dizia:
— Tu precisas limpar melhor este chão. Estás aqui para trabalhar, não para fazer esta cara de sofredora.
Sentiu um frio na barriga pensando que tal reprimenda se dirigia a ele, mas a dona daquela voz olhava com desagrado para uma mucama que estava presente. E que mulher estapafúrdia era aquela dama aos olhos de Nuno! Quase anã, apesar dos sapatos altos de camurça vermelha em seus pés, pele macilenta, cabelos negros e espessos, presos a muito custo no topo da cabeça, e um rosto com traços fracos e pouco agradáveis. Muitas prostitutas da casa eram mais belas que aquela mulher, embora não estivessem enfeitadas com todas aquelas joias e rendas.
A escrava se atirou aos pés de Carlota Joaquina de Bourbon e, espavorida, desamarrou um pano da cintura para lustrar o chão de joelhos. O olhar da rainha se fixou no rapaz e sua expressão desanuviou. Sorriu para ele, embora isso não a deixasse menos feia.
— Entre. E feche a porta.
Um guarda muito parecido com Bastião, porém mais jovem, estava prostrado ao lado da janela por onde entrava uma fraca luz de luar que fazia brilhar a lâmina do machado aos seus pés; Gaba lhe prevenira que ele estaria presente para garantir a segurança da rainha. Uma velha costureira ajustava o vestido de Carlota com alfinetes enquanto ela tentava não se mexer, os braços abertos graciosamente. As chamas nos castiçais faziam a pele sem vida da mulher refulgir.
— Agrada-te meu vestido novo, Nuno? Tu és a primeira pessoa a vê-lo — disse a espanhola, alisando as saias de seda brilhante. — Consegues me entender? Meu Português não é muito bom. Deves pensar que sou louca por estar tão à vontade num lugar como este, mas todos aqui ou tiveram as línguas arrancadas, ou são dignos de confiança. O que posso dizer é que sei cativar a lealdade dos meus criados, não é mesmo, Benta?
A moça que estava tentando limpar o piso de madeira (talvez uma mancha de vinho, imaginou Nuno) ergueu os olhos e acenou com a cabeça, nervosa.
— Benta é um pouco rebelde — confidenciou Carlota com carinho. — Todas as mucamas têm essa peculiaridade de caráter, mas ela está melhorando. Quando eu e Nuno terminarmos, tu voltarás aqui e deixarás tudo limpinho, está bem? Não é um trabalho tão horrível assim, é? — Benta estremeceu e voltou a limpar as manchas do chão.— Alabado sea Dios! — riu-se a rainha ao observar a aflição da garota. — Agora deixem-nos.
A pequena e enrugada costureira ajudou Carlota a tirar o vestido e levou-o consigo para fazer os últimos ajustes, enquanto a escrava saía de cabeça baixa em silêncio. O homem parecido com Bastião, porém, permaneceu em seu posto, rígido e inexpressivo.
Carlota avaliou o rapaz. Gaba conoce mi gusto, refletiu. Pegou-o pela mão e ambos sentaram-se na cama coberta por lençóis limpos.
— Vosmecê não ama o rei? — A pergunta escapou dos lábios de Nuno. — Vossa majestade — corrigiu-se depressa usando o tratamento adequado.
A rainha olhou-o por um momento e ele sentiu medo.
— Há certas coisas que ele não pode me dar — respondeu com malícia. — O que acontecerá aqui não significa nada.
— As mulheres não pensam assim — murmurou o escravo.
— Não sou uma mulher qualquer, sou uma rainha. — Carlota sorriu e Nuno notou o buço escuro acima dos seus lábios flácidos. — Mas entendo seu pensamento, uma vez que é mais comum que os homens sejam infiéis. Esta virtude incorruptível é dispensada às mulheres, ai de nós! O nosso amor, dizem, é fiel como um cãozinho manso, e enquanto isso os maridos se deitam com qualquer prostituta. Ou prostituto. — Deu uma risada. — Mas o que tu entendes de mulheres ou da vida? No eres más que un niño.
Carlota soltou um pesado suspiro e fitou o teto, perdida em pensamentos. Não, não amava o rei. Sequer viviam juntos. Há anos moravam em casas separadas e encontravam-se, muito a contragosto, apenas em ocasiões formais.
— O rei! — ironizou em voz alta. — O tolo, eis a verdade! — El estorbo de mi gloria!, gritou com ferocidade uma voz em sua cabeça. Ainda não conseguira tirá-lo do poder, mas havia tempo. Para ela, a rainha, tudo era possível.
Nuno não estava gostando do tom daquela conversa; certamente ela não costumava compartilhar seus sentimentos com escravos de cama. Pelo menos não com os que ainda têm língua na boca, pensou com um calafrio, mas a visão de Carlota despindo-se apagou qualquer divagação em sua mente. Teve de pensar em Rosa para conseguir ficar apto, mas cumpriu seu encargo. O guarda continuava ali, parado e fingindo que não estava presente. Nuno fez o melhor que pôde para ignorá-lo.
Enquanto estava nos braços do rapaz, Carlota não pensava em Nuno, nem em seu marido... Muito menos no fato de que o escravo não poderia sair vivo daquele quarto. Gaba lhe pedira que o poupasse, mas o risco de uma denúncia não valia a pena. Nuno não era o primeiro e não seria o último. A rainha só conseguia pensar na satisfação por estar quebrando todas as convenções, sua vingança particular contra um mundo que era retrógrado demais, moralista demais. A beleza ela jamais possuíra e o tempo já lhe cobrava o preço por seus desejos que não conheceram a realidade. Isto a matava por dentro. O prazer era seu subterfúgio, seu último recurso para convencê-la de que Deus não estava morto e que sua vida, quiçá, fazia algum sentido.
Nuno adormeceu entre os seios quentes da rainha e nem percebeu quando ela se desvencilhou. Carlota observou-o dormindo. E por que haveria de sentir culpa? Que vida miserável aguardava esta pobre alma! Sentia que estava lhe dando um presente, uma bênção entregue por um anjo com asas de luz. Sair desta existência na flor da idade sem maiores máculas do que sonhos juvenis jamais realizados e um pouco de sangue derramado? Isto lhe parecia mais doce do que a vida que a aguardava lá fora. Vestiu suas roupas silenciosamente e retirou-se sem hesitar.
As velas dos castiçais já haviam se extinguido e o amanhecer despontava lentamente. Quando abriu os olhos, Nuno percebeu que uma sombra vigilante o observava.
O guarda aproximou-se da cama e o arrastou pelos cabelos até o centro do quarto, jogou-o no chão e imobilizou seus braços por trás. Seu rosto ficou bem em cima de uma das manchas que a mucama tentara limpar mais cedo.
Tinha cheiro de sangue.
O sorriso de Rosa foi sua última lembrança e a lâmina do machado desceu com precisão — apenas um golpe e estava feito.